
Estórias e Contos Tradicionais Portugueses
Conto: O Trafulha
O Trafulha era uma figura típica do Concelho de Ferreira do Zêzere, mais propriamente de Águas Belas. Toda a gente o conhecia pelas suas malandrices e maneira de ser.
Tinha estatura média, bons sentimentos, era amigo do seu amigo, não faltava a um só funeral, vestia a opa em todas as romarias da freguesia, era um pouco gabarolas e gostava do seu copito.
A alcunha fora-lhe posta pelo Doutor Real quando no Hospital da Frazoeira o tratou de mazelas adquiridas num acidente com uma barrica da resina que, por via da sua inquietude e rebeldia, lhe passara por cima duma das pernas.
Tinha então os seus sete anos. A arte de brincar e de fazer partidas nascera com ele. Quando as enfermeiras e o próprio médico o consultava ou lhe fazia o tratamento, o Trafulha, de maneira muito airosa e sem que ninguém se apercebesse, escondia-lhe os utensílios, fazendo-os andar meio embaraçados à procura deles.
-E depois o malandro põe-se cá com uma carinha de ingénuo que até Deus se admira!
-É mesmo um grande trafulha, o raça do rapaz!
Mas divertiam-se muito, achavam-lhe graça e admiravam-se com a sua coragem, nunca chorava! Mesmo durante o tratamento, quando toda a gente pensava que iria chorar ou gemer de dor, ele, contrariando tudo e todos, punha-se a fazer as suas brincadeiras.
Junto dele ninguém estava triste, as suas anedotas, as suas invenções permanentes geravam e influenciavam a boa disposição.
Mas, havia também as partidinhas que, embora dinamizadas pelo Trafulha, eram assumidas em grupo pelos seus compinchas.
Mas, nem toda a gente, nem todas as situações serviam para as suas intervenções. Era incapaz de fazer chacota com a miséria, pobreza ou infortúnio. O seu grande gozo era apanhar na armadilha aquelas pessoas que gostam de fazer partidas mas não admitem que lhe as façam.
“A “Maria” era uma dessas. Mal se aproximava o Carnaval, aí estava ela a espera as pessoas para depois poder ir desmanchar as camas, esconder uma ou outra coisa do dia, trazer os colchões para o meio da casa e para o quintal, enfim, brincadeiras que ninguém levava a mal, mas que irritavam bastante.
-Tu és do diabo mulher, mas deixa estar que não perdes pela demora.
-Isso é que era bom, nem que você se mate, está tudo muito bem fechado.
E na verdade a “Maria” não só fechava bem as portas como guardava as chaves num cordel que trazia atado à cintura por debaixo da roupa.
-Estás a olhar, estão aqui estão, mas não são para os teus bigodes, seu Trafulha duma cana.
-Realmente, eu consigo não quero nada, você não dá nenhuma hipótese.
Mas mal ela sabia o que lhe estava reservado, o que se escondia por detrás daquelas fingidas palavras.
Assim que se afastou, o Trafulha, apoiado pelo irmão Chico e pelo primo Manuel, subiu para o telhado, enfiou pela trepadeira uma longa verguinha com um gancho na ponta, onde enfiou o arco da panela que estava em cima do lume, puxa, puxa e aí vem ela cheínha. Tira o chouriço, a morcela, a carne, enfim, tudo o que estava lá dentro, com a excepção do caldo. Depois desceu novamente a panela e colocou-a no mesmo sítio, tal e qual como estava, mas sem a carninha!
Quando a “Maria” entra tranquilamente em casa, se aproxima da lareira e vai toda lampeirinha para espetar o garfo na carne e no enchido, a fim de verificar se estavam cozidos para confeccionar o almoçarão de carnaval, e encontra a panela somente com o caldo, caiu estarrecida, gritando, rogando pragas, ameaçando matar quem tivesse feito tal coisa”.
Outras das vítimas do Trafulha eram os chamados “forretas”, aquelas que têm bastante de seu, mas que se andam sempre a chorar e são incapazes de dar seja o que for.
“A Ti América era uma dessas. O não dar obriga muitas vezes a roubar, e eram os próprios filhos a fazê-lo. Um dia, quando um deles vinha com uma garrafa de vinho para beber com os amigos numa patuscada, teve de a largar e fugir, senão a Ti América ia- lhe aos fagotes.
Quem ficou a seco e por isso não gostou da brincadeira, foi o Trafulha:
-Deixa lá que não perdes pela demora!
E que belo galo ela tinha na capoeira! Pata alta, crista grande e bem vermelha e peito gordo que nem tordos em tempo de azeitona! Sorrateiro, já noite dentro. O Trafulha entra na capoeira, agarra-o e espeta-lhe meia dúzia de alfinetes na cabeça, pelos miolos dentro deixando-o morto junto à rede.
-Ai Jesus, que me acode, o gineto ou a raposa esta noite mataram-me o meu rico galo, eu bem ouvi as galinhas a cacarejar, e porque é que eu não me levantei, meu Deus, porquê? – Lamentava-se efusivamente a Ti América quando pela manhã deparou com o sucedido.
E quando o filho levava o galo dentro de um saco para o ir enterrar, aparece o Trafulha:
- Eh pá, para onde é que tu levas isso?
-Vou enterrá-lo ali no quintal.
-Deixa lá ver isso que quem lhe vai fazer o enterro somos nós, mais logo, na azenha do Décio, vai dar cá um arrozinho de sarrabulho de se lhe tirar o chapéu!
Mas tudo acabava em bem. No momento em que as pessoas eram surpreendidas com os acontecimentos, ficavam furiosas, capazes de matarem cobras e lagartas, porém, passado algum tempo, quando se descobria, acabavam por sorrir com as brincadeiras, fundamentalmente com a ingenuidade e a forma como o Trafulha as engenhava.
Mas ao Trafulha eram também atribuídas culpas de coisas que ele não fazia.
Um dos seus fracos eram as mulheres, dir-se-ia que não podia ver uma burra com um chapéu na cabeça que não arregalasse o olho. Fosse solteira ou casada, tinha de dar o seu piropo e dizer para os colegas:
-Aquela já cá cantou! Não há-de tardar que sejas mordida cá pelo Zé!
Mas era tudo laracha, fogo de vista. O Trafulha adorava a sua mulher, e o que as outras viam nele era mais a sua maneira de brincar do que outra coisa qualquer.
Mas as gabarolices do Trafulha eram levadas a sério por muito boa gente.
“As coisas não iam nada bem lá por casa do Armando. A mulher, que não podia ver-se um só minuto sem ele, não lhe ligava nenhuma, inclusivamente até queria dormir separada.
A consciência do Armando não acusava, antes pelo contrário. Fora sempre fiel e quase só faltava ajoelhar-se diante da mulher para ela lhe dizer qual a razão de tudo aquilo:
-Olha lá, mulher, tu sentes-te doente? Será que não anda por aí alguma doença que não me queiras dizer?
Virava-lhe as costas e se lhe dirigia alguma palavra era ainda a maltratá-lo.
-Não há dúvida, foi ela quem mudou, é nela que está a diferença!
O Armando mirrava-se a pensar, já não sabia o que fazer.
Não há dúvida, foi ela quem mudou, é nela que está a diferença!
O Armando mirrava-se a pensar, já não sabia o que fazer.
Não era de divulgar as suas intimidades, mas, perante tal situação, estava até na disposição de ir encontrar alguém de confiança que o ajudasse.
Mas, enquanto remexia no seu interior com todas essas indecisões, um dia, inesperadamente, o Armando teve um acidente: ia decepando uma das mãos na serração onde trabalhava.
Depois de lhe terem feito tratamento no local, dirigiu-se para casa contorcendo-se com dores.
A mulher não estava, mas pensou que não devia andar por longe, uma vez a porta se encontrava escancarada:
-Nazaré! Oh Nazaré! – chamou o Armando com voz dolente, um pouco arrancada dos gemidos que abafava no peito.
Não podia estar parado, as dores eram muitas.
-Ai Jesus! Mas por onde é que ela andará! – exclamou o Armando aproximando-se da cancela do alpendre para a voltar a chamar.
Ficou sem pinga de sangue, o coração quase parava:
-Ai a alma do diabo, mas que vejo eu!
Quase não queria acreditar. Ao mesmo tempo que a mulher saía do palheiro e se metia por entre o couval, onde ia apanhando umas folhas para disfarçar, viu um homem saltar o muro e seguir de cócoras ao longo dele.
-Hoje vieste cedo, houve por lá algumas avaria na fabrica?
O Armando estava de pé, junto à parede do alpendre.
-Tu não ouves, aconteceu alguma coisa lá na fábrica?
A mulher estava a um passo. Apesar das muitas dores, sentiu desejo de a esbofetear, de lhe saltar com os pés em cima, mas decidiu guardar isso para mais tarde e se possível fazê-lo aos dois.
-Entalei esta mão lá nos toros – disse o Armando tentando disfarçar a intenção que lhe ia no íntimo.
A sua cabeça estava transformada num turbilhão. O esforço que fazia para não pedir contas á mulher estava a ser superior ás dores, ás suas forças.
-Era o Trafulha, só podia ser ele, malandro, tantos copos de vinho que tem bebido aqui na minha adega:
- Hei-de apanhá-los! Hei-de apanhá-los! – murmurava, sem coragem de olhar para a mulher, de quem pela primeira vez sentia nojo.
As investigações do Armando incidiram na perseguição do Trafulha, espiava-o por todo o lado, seguia-o passo a passo.
Quando punha o olhar nele quase lhe davam vómitos, tão grande era a raiva que por ele sentia.
Um dia, o Trafulha encaminhou-se lá para as bandas da sua casa.
O Armando, sorrateiro, como quem não quer a coisa, atalhou pelas lameiras e foi colocar-se atrás de um molho de mato para dali fazer as suas observações.
Enquanto se alojava e apurava o ouvido, viu a mulher sair de casa, ir em direcção aos currais e começar a falar alto para os bichos, ouvindo de seguida dois pequenos assobios vindos do interior do milho.
A sombra da figueira situada a meio do caminho dificultava-lhe a visão, mesmo assim viu, de relance, um homem escapar-se para o interior do palheiro.
O Armando estava inquieto, todo ele tremia, todo ele era raiva, todo ele eram mil olhos fixos na mulher que mirambulava por ali a disfarçar, a passar a pente fino o horizonte.
Quando a viu entrar, preparou-se, abandonou vagorasamente o posto e aproximou-se.
Cautelosamente, encostou a cabeça ás tábuas e ouviu-os cochichar por entre o remexer das palhas.
Estava desvairado, louco, “cego”.
Ali a dois passos encontrava-se um machado velho e ferrugento com que rasgava a lenha, agarrou-o e, com muitas precauções, deslocou-se para junto da entrada do palheiro.
Depois, de maneira ágil, esquecendo todas as dores da mão, deu dois saltos e apanhou-os em flagrante.
Machadada de um lado, machadada do outro:
-Ah, seu Trafulha, seu malandro, seu bandido! Ah, sua desgraçada, sua puta!
-Não me faça isso tio Armando, não me faça isso, eu não sou o Trafulha.
-Eu digo-te se és ou não és, vou cortá-los aqui ás postas, grandes canalhas.
-Não sou o Trafulha não, tio Armando, por favor perdoe-me, não me faça mal.
-O Armando arregalou os olhos, estava estupefacto. Mais uma vez fora enganado. Afinal quem estava na sua frente, com o corpo esquartejado, não era na verdade o Trafulha, mas sim um dos seus grandes amigos.
Contrariamente ao que possa extrair-se do comportamento e maneira de ser do Trafulha, ele ficou extremamente indignado quando soube do acontecimento. Não se revia de forma nenhuma, nem sequer como figura emprestada, a ser personagem nesse acto.
Quem não resistia á chacota eram os brincalhões, aqueles que tinham mais confiança com ele:
-Olha o que te estava guardado, tiveste pouca sorte, tiveste, seu manganão!
-Vocês são mas é malucos. Eu?! Isso é que era bom! Muito lorpa há-de ser o ladrão que use a camisa roubada à frente do dono!
Ditos, Ditados e Provérbios Portugueses
Abril águas mil
Sugestão de Culinária
Bacalhau com Molho Escuro
Fritam-se as batatas ás rodelas.
Fritam-se, passadas por farinha, as postinhas de bacalhau.
Passam-se, em seguida, por ovo, e voltam a fritar-se.
À parte faz-se um refogado com salsa, cebola, alho ao qual se junta um pouco de puré de feijão vermelho, temperado com pimenta e vinagre.
Num pirex põem-se batatas às camadas alternadas com o bacalhau, o molho por cima e serve-se.
Poesia
Vila viçosa e querida
Por altos pinheiros guardada
Tenho em si bem ancorada
O coração e a vida.
Por verdes campos estendida
Por densos lençóis banhada
Vida p´ra sempre marcada
Por força da despedida.
Mas se foi triste a partida se dura foi a ausência
Retirou-se da permanência
Uma singela lição:
Que não basta ter coração
Mas cuidar da sua vida!...
Sá Flores
Sugestões de Fim semana/ O que visitar na minha aldeia/vila/cidade?

Foto da semana
O Grupo de Teatro da nossa Universidade, numa visita guiada ao Mosteiro de Alcobaça
