Estórias e Contos Tradicionais Portugueses
Conto A Consulta
O doutor Mendes Ferreira foi das ressoas mais ilustres nascidas no Concelho de Ferreira do Zêzere.
Figura eminentemente reconhecida no estrangeiro e também com referências dos seus feitos de médico e humanista por muitos dos principais hospitais portugueses.
Não é pretensão minha, nem teria cabimento aqui num simples conto, fazer-lhe as merecidas referências, nem dar-lhe os justíssimos elogios. Vou apenas falar de um episódio que com ele tive oportunidade de compartilhar.
É pensamento corrente que o doutor Mendes Ferreira era tão ilustre como simples e popular, daí que sejam inesgotáveis as narrações com ele relacionadas.
Se é verdade que quando operava só falava em serviço e sem nenhum sentido de humor, fora era totalmente diferente, gostava de uma boa anedota e de uma boa prova de vinho, não podendo á sua volta haver tristezas.
Por ele protegido durante a pior fase de doença da minha vida, senti necessidade de o consultar, desconhecendo na altura o parentesco que ainda nos ligava.
Tinha deixado os hospitais há pouco tempo; a guerra, as enfermarias, a deficiência, estava tudo muito fresco, chocavam permanentemente com o meu grande desejo de viver!
Recebeu-me numa das suas residências de campo, situando no lugar do Castelo em Ferreira do Zêzere.
Depois do olá habitual com a sua voz extremamente roca, de me ter colocado a mão nas costas e conduzido até à sala, num ápice, e muito naturalmente, baixou-me as pálpebras, olhou para dentro dos olhos, viu-me a língua e a polpa das unhas e começou a servir-me um conhaque.
-Desculpe senhor doutor, mas eu não posso beber.
-Não podes porquê?
-Porque quando eu saí do hospital o médico disse para eu não beber.
-E tu perguntaste-lhe se ele também não bebia? Ora, ora, vamos lá beber isso tudo.
E enquanto eu algo timidamente ia saboreando aquele maravilhoso néctar totalmente desconhecido das minhas papilas, ele continuou:
-os médicos, meu Deus, os médicos! Olha, cheguei há dois dias da Suíça onde fui consultar um sobre a minha garganta. O tipo foi horroroso, pura e simplesmente horroroso. Vê lá tu que depois de me ter examinado se vira para mim e diz:
«-O colega sabe que tem um cancro?»
-Senti o sangue gelar-se-me e o corpo paralisar, se tivesse ali uma pistola tinha-lhe dado um tiro. É incrível, dizer-me aquilo assim, a seco, sem mais nada. Um médico, la por saber muito, não pode ser um carrasco. Que diabo, um doente é para além de tudo um ser humano, e tem de se saber como trata-lo e como lidar com ele. –Já bebeste tudo?
-Já sim, senhor doutor.
-E que tal?
- Oh senhor doutor, é óptimo!
-Não é isso rapaz, como é que te sentes?
-oh senhor doutor, mais quente, parece que até o sangue circula melhor!
-E engordar, quando é que tu engordas’
-Senhor doutor também não posso fugir à dieta.
-Dieta, que dieta?
-Galinha corada e fígado grelhado.
-Ora, ora. Deixa ver o copo para irmos embora.
Estávamos sós, naquele momento ele ausentara-se, dando-me assim oportunidade de pensar no que ele havia dito.
Ir embora? E a consulta e a receita? Não, não, não podia ser, eu queria a consultas.
-Pronto, vamos lá.
-Senhor doutor, mas eu…
-Sim, já vamos ver disso.
Chegados á rua e depois de entramos no carro conduzido por ele, pensei que me iria levar para o hospital afim de fazer ali a tal revisão que eu desejava.
Mas, quando dou por mim, estava no Salgueiral, em casa do senhor Joaquim António, que já estava á sua espera e se apressou a abrir-lhe a porta do carro e a recebê-lo.
-Trago companhia!
-Senhor doutor, a casa é modesta e pequena, mas cabemos cá todos.
Eu estava confuso, boquiaberto com tudo aquilo, mas não dei parte de fraco, integrei-me num pequeno grupo formado pela família do senhor Joaquim e alguns amigos que aguardavam a chegada do doutor Mendes.
Passámos então por um portão, por um pequeno pátio e por uma porta, sempre envolvidos por forte latir de cães, que chegavam mesmo a afiar os seus dentes quando nos viam próximo do seu improvisado canil.
-Sentem-se, façam favor de se sentar.
Estávamos na adega e o senhor Joaquim convidava-nos a ocuparmos o respectivo ligar numa tábua corrida, suportada por uns tijolos e forrada por uma manta de “trapos”, colocada junto de uma improvisada e tosca mesa, que tinha em cima, dentro de vários pratos, chouriço, presunto, queijo, broa de milho e vinho, tudo regional.
Cada um começou a petiscar do que mais gostava, enquanto se iam ouvindo pequenas larachas encabeçadas pelo doutor Mendes, que era o rei da festa e o mais desinibido:
-olha rapaz, tudo isto que está aqui é para se comer e beber, ouviste?
-Sim, sim, senhor doutor, é isso que estou a fazer.
E que bem que me estava a saber tudo aquilo! Havia eternidades que pela minha boca não passava coisa igual…
-Então, ó Joaquim, quando é que vem esse coelho á vilão? Se demoras muito volto a colocar-te aí as hérnias.
-Vai já, vai já, doutor. Isso lá das hérnias é que não, bendita a hora em que o senhor me pôs a mão.
E pelo murmurinho fiquei a saber que aquele convívio fora prometido pelo senhor Joaquim ao doutor aquando da operação às hérnias.
-Eh caramba, já cheira, já cheira!
-O doutor desculpe lá demora, mas isto tem de ser feito na hora, para ser comido quentinho.
E por cimo da mesa começaram a aparecer travessas repletas de coelho bravo grelhado e temperado com um molho feito à base de rosmaninho e outras ervas do segredo do senhor Joaquim.
-Eh Joaquim, onde é que tu foste descobrir esta maravilha?
-Isso é a comida dos caçadores. Quando andamos por lá e como não há muito tempo a perder, é matar, tirar a pele, grelhar, pôr o molho e comer.
Era na verdade uma verdadeira maravilha, eu não conhecia “o coelho ao vilão”, mas era realmente delicioso.
Quem parecia uma dobadoura, era o senhor Joaquim, não parava, ora trazendo travessas e molhos, ora descendo e subindo a escada que dava para o subterrâneo, onde ia buscar as garrafas com vinho especial da sua colheita.
E, já no final, por entre os acordes de uma viola misturados com o canto de umas baladas, o doutor Mendes aproximou-se de mim:
-Então rapaz, estás a gostar da consulta?
-Imenso senhor doutor! A partir de agora não mais quero outro médico.
Na verdade, aquele convívio tinha-me restituído a confiança, feito acreditar que podia comer de tudo, que a minha doença naquela altura não passava de um problema psíquico.
Ditos, Ditados e Provérbios Portugueses
Quem não trabuca
Não manduca.
Sugestão de Culinária
Cachola de Porco - Receita popular
Cortam-se quinhentos gramas de redenho e leva-se num tacho, ao lume, a derreter.
Retiram-se em torresmos.
Cortam-se, em pedaços, setecentos e cinquenta gramas de carne magra de porco, duzentos gramas de fígado, cem gramas de baço que se deitam na gordura, bem quente.
Junta-se então, quatro dentes de alho bem picado, uma folha de louro, uma malagueta, duas colheres de sopa de caldo de pimentão, dois cravinhos, uma colher de cominhos e sal. Deixa-se cozer.
Quando apura, rega-se com vinho branco, sangue de porco (que foi mantido líquido, desde a matança, com vinagre e sal).
Podem adicionar-se batatas no molho, que poderão acompanhar a cachola.
Poesia
Podias ser rosmaninho
Uma acácia preciosa
Um lindo botão de rosa
Passeado em trenzinho.
Ter de cara um bom palminho
Vida liberta e airosa
E p´ra menina famosa
Não te faltar um pouquinho.
Mas eis que o mundo interesseiro
No teu leito penetrou
E a tua vida transformou
Em pesar, em duro drama
Que foste cardo e lama
O mais poluído ribeiro!
Sá Flores
Sugestão de Fim de Semana / O que visitar na minha Cidade?
Durante este mês estão expostas na Biblioteca Municipal de Ferreira do Zêzere 25 miniaturas de táxis de vários pontos do mundo.
Mais uma parte da coleção do Eng. Rui Simões
Foto da Semana
Alunos e professores numa visita guiada ao Museu da Ciência, na Universidade de Coimbra.